DOMESTICAR O “ANIMAL” NA PAISAGEM.
1/21/2013
Programar a flexibilidade implica aceitar outras visões de um tema, outras abordagens e outras utilizações para aquilo que até de forma consciente preconizamos. Utilizam-se nomes que se afastem de estereótipos de uma função; estrutura, espaço, conjunto arquitectónico, culminando no pavilhão multifunção. Concebem-se “open spaces”, estruturas abertas, dá-se ênfase à ideia da repetição, da estandardização ou utilizam-se recursos que transformam um tipo ou tipologia num edifício multifuncional; salas que se interligam, espaços intercomunicantes, sistemas móveis, paredes móveis e portas escondidas.
A apropriação do espaço é feita de forma muito rápida, a aparente ausência de regras ou códigos arquitectónicos estereotipados permite a intervenção de todos na adopção de variantes, ou propostas de alteração para responder a necessidades imediatas... A ambiguidade na atribuição de uma função específica não implica que não exista um modo de funcionamento. No processo de concepção é atribuída uma ordem, relações espaciais hierárquicas, percursos e campos visuais, que demonstram a visão racional e poética do edifício. A variabilidade dos interlocutores que gerem ou usam os edifícios, nas suas diferenças culturais e sociais, provocam por vezes uma comunicação Kafkiana. A lógica do edifício pode ser completamente subvertida mesmo ainda na fase de projecto, onde a comunicação assume particular relevância.
Se um edifício consegue resistir a todo este processo sem perder a integridade, então pelo menos parte do nosso trabalho foi bem feito. A obra não deve perder a identidade, um corpo que persiste ao tempo, às alterações e aos adornos. Podemos chamar-lhe a redução ao seu estado natural, como um corpo sem “piercings”, tatuagens ou roupa. Nestes casos as grandes mutações saltam gerações, tendem a aumentar o edifício com outros braços funcionais, a menos que o cliente imponha uma “dieta”, mesmo que pouco rígida.
A flexibilidade é programada. Atribuímos a pequenas soluções uma função específica. A versatilidade reside no corpo no seu conjunto e não nos seus constituintes. Os pilares, ligações e fixações são como os ossos, tendões e músculos. Sujeitar todos os componentes do edifício a opções aleatórias e de resposta de momento, não é garantir a versatilidade, é abrir a porta a opções casuísticas que podem degenerar numa progressão caótica. É verdade que “o que não mata engorda”, mas interessa-me que pelo menos o edifício consiga persistir na sua essência.
A acção do tempo é fundamental em estabelecer uma crítica clara que separa o “corpo” dos elementos acessórios, liberta-o da sua posição temporal estática, para lhe conferir algum carácter de intemporalidade. A visão que temos hoje dos templos gregos, das pirâmides egípcias ou das cidades Incas permite-nos quase desligar da acção humana. Tal como no trabalho de Louis G. Le Roy a fusão entre cultura e natureza resulta num objecto arquitectónico criado a duas mãos. O seu trabalho de mais de 30 anos numa mega estrutura de blocos empilhados pelas próprias mãos permite que se veja a interacção da natureza no processo criativo que ocorre em simultaneidade.
Essa experiência coloca-nos perante fenómenos que nos superam. Como diz Álvaro Siza a propósito da sua intervenção no Chiado “ … o tempo é o maior arquitecto, o nosso trabalho resulta sempre apenas numa situação esquemática…”. Siza vê o tempo de um ponto de vista ligeiramente diferente, como algo que vai adicionando camadas e coerência ao projecto. Limpando ou adicionado, esta acção do tempo permite-nos ter a percepção que a obra a dado ponto se liberta do domínio exclusivo do arquitecto, libertando-se para o cliente e para a sociedade. Esperamos que no processo atinja o seu estado de maioridade e ganhe personalidade e estatuto que lhe permita ter relevância nas opções de alterações / renovações…
Neste sentido muitos arquitectos esquecem-se que a Arquitectura se separa dos campos disciplinares de outras Artes, nomeadamente a Escultura. O objecto arquitectónico não se separa da Escultura pela criação de espaço, mas pela possibilidade de criar ambientes e permitir a total apropriação do objecto.
Falar do objecto arquitectónico é sempre difícil. Numa acepção clássica o objecto arquitectónico deve ser funcional e enquanto obra de arte deve ser funcional sem possuir uma função. Enquanto obra de arte o objecto arquitectónico é muitas vezes descrito através das outras Artes, Pintura, Escultura, Música. Esta afinidade entre os diversos campos artísticos é muito importante para a integração de novos conceitos que são desenvolvidos noutras áreas.
Gernot Böhme (1) coloca a questão se a Arquitectura não tem nada a reclamar para si própria que a distinga das outras artes. Ele defende que a atmosfera/ ambiente é o campo específico da Arquitectura. A nossa presença, onde nos posicionamos, influencia o espaço e pode ser topologicamente entendido como a determinação de um lugar. O espaço só é genuinamente experimentado por estarmos fisicamente presentes. Nós sentimos e alteramos o espaço que nos rodeia, afectando a percepção da arquitectura. Sentindo a nossa própria presença e o nosso estado de espírito, sentimos o espaço no qual estamos presentes.
Isto leva mais longe a preposição de Vitrúvio de que o Homem é a medida da Arquitectura, ultrapassando apenas as questões de Antropometria e separa a Arquitectura do domínio das Artes Visuais, tal como Hegel a colocava.
A percepção do espaço enquanto atmosfera é particularmente relevante no projecto do Mercado da Terra. A percepção intuitiva que temos do edifício depende muito do evento que foi realizado, e das pessoas que mudam. Os aspectos físicos da construção foram projectados para se "diluírem" na atmosfera que é criada. Só assim o edifício se pode manter belo para utilizadores tão diferentes, de um evento para o outro.
Boris Groys (2) coloca a questão da beleza como visibilidade e como uma interpretação universal de códigos estabelecidos do que é belo. As ideias sobre a beleza manifestam-se de forma heterogénea. Ele coloca em oposição o gosto local derivado de uma cultura enraizada à internacionalização / globalização de uma ideia de gosto predominante. A relação entre uma obra de arte e o seu contexto cultural torna-se variável. Como exemplo refere que hoje comemos comida chinesa não apenas na China, mas também em Nova Iorque, Paris, etc. Em que contexto cultural é que a comida chinesa sabe melhor? Não é necessariamente melhor na China.
Apesar de não julgarmos a obra de Arte desligada do seu contexto, hoje a nossa principal preocupação é como é que uma obra de Arte se posiciona em diferentes contextos culturais. Aspecto que é sobretudo reforçado pela proliferação de publicações da especialidade, que provocam o desmembramento das relações com o lugar e o contexto, e acentuam a existência de um gosto internacional.
O autor reforça a ideia de que mesmo a arquitectura que é encontrada apenas num sítio só poderá ser submetida ao contexto da experiência do turista. Nesse sentido as obras de arquitectura são apreciadas não apenas pelo aquilo que são, mas também por aquilo que não são. A beleza não assenta apenas naquilo que se vê, pelo contrário é por vezes mas belo não ver alguma coisa. Daí o encanto do minimalismo abstraccionista, que reside sobretudo nos seus aspectos não visíveis.
O tema da beleza como invisibilidade suscitou o meu interesse quando tentava perceber como seria visto o Mercado da Terra pelos seus utilizadores e público, porque enquanto obra profundamente enraízada no local, não propriamente preocupada com o gosto local, a sua utilização pluricultural proporciona a existência de público e utilizações distintas, e se a obra é apreciada pelas suas qualidades locais, determinadas pelo contexto, se pelo gosto internacional globalizado, ou se tal como na relação forma/fundo, em que uma obra de Arte se torna visível quando se separa do seu contexto (fundo), como um quadro numa parede, ou quando se mistura com o contexto e portanto se torna invisível de acordo com uma das leis básicas da percepção visual em que uma figura não pode ser visível se não for visualmente distinguida do seu fundo. Consequentemente os aspectos mais interessantes do Mercado da Terra seriam os que são revelados pela sua não visibilidade.
Este aspecto reforça a ideia de que o campo específico da Arquitectura é o ambiente/atmosfera. Esse carácter não tangível permite que de evento para evento o edifício se transmute e permitir que prevaleça a força das pessoas, do movimento, da carga emocional e da forma como usufruem do espaço. Porém um edifício não consegue ser o sujeito de uma conotação ideológica, de uma afirmação clara dos seus princípios se não for visível. Nem podemos moldar um pensamento ideológico ou moral nas pessoas, pressionando-as para verem aspectos de beleza e outras qualidades intrínsecas em algo que não pode ser visto pelo sujeito (que não é visível)!
Sem querer atribuir qualidade humanas a objectos inanimados, eu chamaria a esta qualidade de personalidade, até encontrar um termo mais adequado. O objecto arquitectónico deve possuir essa qualidade de personalidade, um traço distintivo que o separa dos restantes, uma qualidade intrínseca que o marca, sem que isso se confunda com aspectos de espectacularidade ou destaque. Provavelmente nem estará totalmente próximo dos cânones de beleza. São traços peculiares, pequenos desvios que tornam os edifícios únicos e o separam da massa indiferenciável. Como um sinal no rosto, um nariz sisudo. Provavelmente assumindo alguns aspectos de assimetria como forma de expressar uma ideia ou evidenciar um determinado aspecto.
Numa conferência sobre Álvaro Siza e sobre os aspecto mais complexos da sua obra, falava-se sobre a dicotomia entre os elementos construídos que revelam pela sua composição mais do que tradicionalmente são, e sobre a diversidade na regularidade. A simetria é necessária, mas é necessária alguma assimetria que aumente o encanto e a surpresa. É necessário ver a cidade como uma floresta.
Como diz Karl Rosenkranz (3) “tomemos por exemplo a terra : de forma a ser um elemento de massa belo deveria ser uma esfera perfeita. Mas não o é. A terra é achatada nos pólos…e para além disso a sua superfície é marcada por uma grande inconsistência de elevação… Nem o mesmo se pode dizer da lua com a variabilidade dos seus montes e depressões, é lindo !”
Neste momento todos estes conceitos me parecem simultaneamente contraditórios, mas também plausíveis na obra do Mercado da Terra. Como diz Jacques Herzog "é o povo que cria os icons e nesse sentido não posso ser eu a interpretar as qualidades do belo ou do estatuto que atribuem a um determinado edifício".
Pode uma obra ser simultaneamente visível e invisível? Se para uma obra de Arte em que o contexto onde é exposta é variável essa afirmação é plausível, como funciona nos casos em que o contexto não muda? Para mim o desafio do Mercado da Terra era que pudesse persistir nesta dualidade.
(1) As questões são colocadas por Gernot Böhme num texto com o título “Atmosphere as the subject matter o Architecture”. Canadian Center for Architecture, “ Herzog e de Meuron – Natural History”, pág. 398-406 , editorial Philip Ursprung, Lars Müller Publishers 2002/2005.
(2) As questões são colocadas por Boris Groys num texto com o título “Beauty as Visibility”. Canadian Center for Architecture, “ Herzog e de Meuron – Natural History”, pág. 407-415, editorial Philip Ursprung, Lars Müller Publishers 2002/2005.
(2) ROSENKRANZ, Karl; “ Aesthetik des Hässlichen”, Könisberg, 1853; Leipzig Reclam Verlag, 1990.
Imagens de cabeçalho
Feira e Mercado do Gado em Ponte de Lima
© arquivo atelier carvalho araújo
© arquivo atelier carvalho araújo
© joel moniz
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